ANTROPOLOGIA
E PODER: DESDOBRAMENTOS
Até este ponto de nosso
curso, pode-se dizer que tratamos as sociedades primárias como grupos humanos
sem poder e sem Estado. Não são necessariamente sociedades sem práticas
políticas. A política é um conjunto de atividades humanas planejadas e
integradas culturalmente cujo objetivo é a regulação do poder. Obviamente isto
pode acontecer sem a existência de um terceiro e exteriormente à comunidade, ou
sem Estado. E pode também acontecer que no âmbito da política, ou entre as
atividades sociais do grupo que visam à sua sobrevivência material entre
atividades sociais do grupo que visam à sua sobrevivência material e espiritual
e que, obrigatoriamente envolvem a todos, essas atividades estejam
propositadamente diluídas de formas a impossibilitar o surgimento de um “governante”
que acumule poder. Este é o caso das sociedades primárias. Entre elas, a “práxis”
política é de tal forma que impede o exercício do poder de modo concentrado em UM-Único.
Logo, impede também o surgimento do Estado. (SARACUSA ROCHA, 2015, p. 95).
Por sua vez, no Estado
Moderno, nas sociedades complexas, devemos reconhecer que essa separação de
autoridade e poder parte de nossas premissas filosóficas tradicionais, segundo
as quais sempre nos parece que poder é Violência institucionalizada e
consentida e que a violência do poder sempre é necessária para o convívio
social. Por esse motivo não estranhamos a violência do Estado e achamos natural
que o fazer político seja impregnado de estratégias não éticas e violentas. Se
separarmos o poder da violência, quer dizer, se trabalharmos tais categorias
como diferentes e mesmo opositoras, então fica mais claro que o problema não é
o poder em si mesmo, mas as condições e os princípios em que se baseia seu
exercício.
Nas sociedades primárias
fazem-se política com obstinação em controlar o poder, mas não podem fugir da
autoridade e coercibilidade enquanto grupo humano. Autoridade e poder se confundem muitas vezes
e parecem mais identificados quanto mais a sociedade adquire complexidade e
precisa fazer frente aos entreves da natureza e da convivência humana. Nas
sociedades mais simples a noção de poder é quase nula; nas de alguma
complexidade a noção de poder começa a fazer sentido maior; entre nós, as
sociedades modernas industriais, o poder já é sinônimo de violência. (SARACUSA ROCHA, 2015, p. 100).
O ESTADO DE EXCEÇÃO
- PODER E VIOLÊNCIA EM HANNAH ARENDT
PODER E VIOLÊNCIA EM HANNAH ARENDT
O pensamento de Hannah
Arendt (1906/1975) é fundamental para entendermos a questão que envolve a nossa
filosofia antropológica do direito. Para Arendt o poder está alicerçado em dois
conceitos concêntricos:
- a Separação entre Poder
e Violência
- a Ocupação do espaço
público.
Para Arendt Autoridade e
Poder se complementam e essa subordinação do poder à autoridade se opõem ao
autoritarismo e a violência. É exatamente da ocupação do espaço público de
forma pró-ativa que os homens retiram a essência da legitimidade da autoridade
que designa o poder como forma política do existir humano.
De forma contrária, uma
participação no espaço público reativa, omissiva, corresponde um vácuo de
poder, ao mesmo tempo a negação da própria “condição humana” e a condição
profícua para o totalitarismo, forma extrema de ilegalidade, arbítrio,
truculência e “banalização do mal”.
- PARTICIPAÇÃO –
autoridade, legitimidade, poder, democracia (liberdade coletiva possível).
- OMISSÃO –
autoritarismo, legalidade residual, violência, totalitarismo (fim do
pensamento).
A grande indagação do
pensamento arendtiano pode ser resumido na questão: “O que leva o homem, ser
racional, a construir a existência humana como supérflua e a perpetrar o terror
como forma banal do mal?
O Século XX provou a verdadeira
face oculta do homem: para além do trabalho, do econômico, do religioso e do
político, quando a omissão e apatia pela coisa pública e pela coletividade se
instalam socialmente, os homens estão prontos para a total perversão e
bestialidade contra a própria espécie, e de nada valem a razão, a ciência, a
tecnologia, a diplomacia, bastando para isso que certas condições
sociopolíticas se apresentem.
É exatamente nesses
momentos, quando a omissão e apatia imperam, que todo o engenho humano se
coloca a favor da destruição. Na base desses projetos “satânicos” está o
simples fato do esvaziamento do pensar; não importa a relação com as ideologias
e as grandes narrativas políticas de Esquerda ou de Direita. Nesses períodos a
soberania é realmente o poder no meio do caos como estado de exceção (Teologia política
de Carl Schimitt).
Dessa forma o fracasso da
atividade filosófica, do pensamento singular e subjetivo do homem moderno, é o
fracasso da razão que objetivou tudo e todos, inclusive a filosofia e os
intelectuais e cientistas. SEM O OUTRO EU, SEM O PENSAR COMIGO MESMO, SEM A
AUTORREFLEXÃO, TUDO SE REDUZ À RAZÃO INSTRUMENTALISTA NO CICLO DE
PRODUÇÃO-CONSUMO, TUDO SE EXTINGUE NO ESTRITO CUMPRIMENTO “ENENCÉFALO” DOS
CÓDIGOS, DOS MANUAIS, DOS PROCESSOS, DA MANIPULAÇÃO “TÉCNICO-MEDIÁTICA DA
LINGUAGEM, DO REINO DA FORMA SOBRE O CONTEÚDO.
O homem que não pensa consigo mesmo não
tem uma moral, não pode ser ético, não pode optar, não ode ser livre, não pode
respeitar a si mesmo, e, consequentemente, não pode respeitar o próximo, acatar
a opção do semelhante. Neste esvaziamento do ser-para-si, banaliza o outro, reduz a
existência humana a quase nada, não distingue o bem do mal, o certo do errado,
e deixa-se levar como rebanho ao paroxismo da bestialidade.
Quando
Eichmann (general nazista administrador e encarregado da logística dos campos
de concentração como Auschwitz) foi julgado em Israel, disse: “Se, no estrito cumprimento de meu dever, tivesse de enviar
meu pai e minha mãe para um campo de concentração, não teria dúvidas em fazê-lo”.
É essa mentalidade que se mostra totalmente despida de valores em razão de uma
instrumentação codificada do direito, um vazio de pensar consigo mesmo, uma
preparação pessoal para a convivência coletiva, para a observação da
diversidade, para a construção da tolerância.
Dessa
forma a questão moral fundamental é construída tendo como base “não a obediência
a uma lei externa, mas ao interesse em ser consistente comigo mesmo, o que é
possível somente se se instaura o diálogo sem som de mim comigo mesmo.
FONTE:
Antropologia Jurídica: geral e do Brasil: para uma filosofia antropológica do
Direito. José Manuel de Sacadura Rocha.