"O torturador não é um ideólogo, não comete crime de opinião, não comete crime político, portanto. O torturador é um monstro, é um desnaturado, é um tarado" (Ayres Brito)

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

ANTROPOLOGIA E PODER: DESDOBRAMENTOS

Até este ponto de nosso curso, pode-se dizer que tratamos as sociedades primárias como grupos humanos sem poder e sem Estado. Não são necessariamente sociedades sem práticas políticas. A política é um conjunto de atividades humanas planejadas e integradas culturalmente cujo objetivo é a regulação do poder. Obviamente isto pode acontecer sem a existência de um terceiro e exteriormente à comunidade, ou sem Estado. E pode também acontecer que no âmbito da política, ou entre as atividades sociais do grupo que visam à sua sobrevivência material entre atividades sociais do grupo que visam à sua sobrevivência material e espiritual e que, obrigatoriamente envolvem a todos, essas atividades estejam propositadamente diluídas de formas a impossibilitar o surgimento de um “governante” que acumule poder. Este é o caso das sociedades primárias. Entre elas, a “práxis” política é de tal forma que impede o exercício do poder de modo concentrado em UM-Único. Logo, impede também o surgimento do Estado. (SARACUSA ROCHA, 2015, p. 95).
Por sua vez, no Estado Moderno, nas sociedades complexas, devemos reconhecer que essa separação de autoridade e poder parte de nossas premissas filosóficas tradicionais, segundo as quais sempre nos parece que poder é Violência institucionalizada e consentida e que a violência do poder sempre é necessária para o convívio social. Por esse motivo não estranhamos a violência do Estado e achamos natural que o fazer político seja impregnado de estratégias não éticas e violentas. Se separarmos o poder da violência, quer dizer, se trabalharmos tais categorias como diferentes e mesmo opositoras, então fica mais claro que o problema não é o poder em si mesmo, mas as condições e os princípios em que se baseia seu exercício.
Nas sociedades primárias fazem-se política com obstinação em controlar o poder, mas não podem fugir da autoridade e coercibilidade enquanto grupo humano. Autoridade e poder se confundem muitas vezes e parecem mais identificados quanto mais a sociedade adquire complexidade e precisa fazer frente aos entreves da natureza e da convivência humana. Nas sociedades mais simples a noção de poder é quase nula; nas de alguma complexidade a noção de poder começa a fazer sentido maior; entre nós, as sociedades modernas industriais, o poder já é sinônimo de violência. (SARACUSA ROCHA, 2015, p. 100).

ESTADO DE EXCEÇÃO (PEDRO ESTEVAM SERRANO):


O ESTADO DE EXCEÇÃO:



A SELETIVIDADE DO DIREITO BRASILEIRO (RUBENS R R CASARA):



PODER E VIOLÊNCIA EM HANNAH ARENDT


O pensamento de Hannah Arendt (1906/1975) é fundamental para entendermos a questão que envolve a nossa filosofia antropológica do direito. Para Arendt o poder está alicerçado em dois conceitos concêntricos:
- a Separação entre Poder e Violência
- a Ocupação do espaço público.
Para Arendt Autoridade e Poder se complementam e essa subordinação do poder à autoridade se opõem ao autoritarismo e a violência. É exatamente da ocupação do espaço público de forma pró-ativa que os homens retiram a essência da legitimidade da autoridade que designa o poder como forma política do existir humano.
De forma contrária, uma participação no espaço público reativa, omissiva, corresponde um vácuo de poder, ao mesmo tempo a negação da própria “condição humana” e a condição profícua para o totalitarismo, forma extrema de ilegalidade, arbítrio, truculência e “banalização do mal”.
- PARTICIPAÇÃO – autoridade, legitimidade, poder, democracia (liberdade coletiva possível).
- OMISSÃO – autoritarismo, legalidade residual, violência, totalitarismo (fim do pensamento).
A grande indagação do pensamento arendtiano pode ser resumido na questão: “O que leva o homem, ser racional, a construir a existência humana como supérflua e a perpetrar o terror como forma banal do mal?
O Século XX provou a verdadeira face oculta do homem: para além do trabalho, do econômico, do religioso e do político, quando a omissão e apatia pela coisa pública e pela coletividade se instalam socialmente, os homens estão prontos para a total perversão e bestialidade contra a própria espécie, e de nada valem a razão, a ciência, a tecnologia, a diplomacia, bastando para isso que certas condições sociopolíticas se apresentem.
É exatamente nesses momentos, quando a omissão e apatia imperam, que todo o engenho humano se coloca a favor da destruição. Na base desses projetos “satânicos” está o simples fato do esvaziamento do pensar; não importa a relação com as ideologias e as grandes narrativas políticas de Esquerda ou de Direita. Nesses períodos a soberania é realmente o poder no meio do caos como estado de exceção (Teologia política de Carl Schimitt).
Dessa forma o fracasso da atividade filosófica, do pensamento singular e subjetivo do homem moderno, é o fracasso da razão que objetivou tudo e todos, inclusive a filosofia e os intelectuais e cientistasSEM O OUTRO EU, SEM O PENSAR COMIGO MESMO, SEM A AUTORREFLEXÃO, TUDO SE REDUZ À RAZÃO INSTRUMENTALISTA NO CICLO DE PRODUÇÃO-CONSUMO, TUDO SE EXTINGUE NO ESTRITO CUMPRIMENTO “ENENCÉFALO” DOS CÓDIGOS, DOS MANUAIS, DOS PROCESSOS, DA MANIPULAÇÃO “TÉCNICO-MEDIÁTICA DA LINGUAGEM, DO REINO DA FORMA SOBRE O CONTEÚDO.
O homem que não pensa consigo mesmo não tem uma moral, não pode ser ético, não pode optar, não ode ser livre, não pode respeitar a si mesmo, e, consequentemente, não pode respeitar o próximo, acatar a opção do semelhante. Neste esvaziamento do ser-para-si, banaliza o outro, reduz a existência humana a quase nada, não distingue o bem do mal, o certo do errado, e deixa-se levar como rebanho ao paroxismo da bestialidade.
Quando Eichmann (general nazista administrador e encarregado da logística dos campos de concentração como Auschwitz) foi julgado em Israel, disse: “Se, no estrito cumprimento de meu dever, tivesse de enviar meu pai e minha mãe para um campo de concentração, não teria dúvidas em fazê-lo”. É essa mentalidade que se mostra totalmente despida de valores em razão de uma instrumentação codificada do direito, um vazio de pensar consigo mesmo, uma preparação pessoal para a convivência coletiva, para a observação da diversidade, para a construção da tolerância.
Dessa forma a questão moral fundamental é construída tendo como base “não a obediência a uma lei externa, mas ao interesse em ser consistente comigo mesmo, o que é possível somente se se instaura o diálogo sem som de mim comigo mesmo.
FONTE: Antropologia Jurídica: geral e do Brasil: para uma filosofia antropológica do Direito. José Manuel de Sacadura Rocha.

terça-feira, 4 de junho de 2019

I) MAGIA, PODER E DIREITO



I) MAGIA, PODER E DIREITO
A magia: a magia é, em primeiro lugar, o elo místico do homem primevo com a natureza, uma natureza possuidora de forças – reações – incognoscíveis, diante das quais o homem está em relação de inferioridade. As comunidades primárias, diante da potencialidade superior da natureza, reproduzem em seu “formalismo” da experiência cotidiana o sacrifício sagrado de subserviência a essas potencialidadesNão é a razão da ciência, não é a lógica formal do conhecimento, mas a adoração e a veneração do que se deixa dominar(ROCHA, 2015, p.83).
A Magia nasce, dessa forma, da completa incompreensão do homem pelo poder dos fenômenos naturais da natureza, como os raios, tempestades, noite, dia, estrelas, enchentes, secas etc.
Rituais mágicos: os rituais mágicos, no início, para o homem primário, se revestem de um caráter coercitivo por parte dos espíritos, e no sentido indicado pelo praticante dos atos mágicos, o feiticeiro, o xamã, o oráculo. (ROCHA, 2015, p.83).
A verdade é que o feiticeiro exerce uma função de poder sobre os demais membros da tribo.
- Surgimento da Religião e do Direito: Quando, mais tarde, esse mesmo sentimento de potencialidade, que a própria razão científica em vão tenta conhecer, exige outros rituais, a religião estabelecerá a aliança entre o conhecimento analítico e a fé, agora, porém, com algum impedimento da arbitrariedade da ação divina, estabelece-se certa juridicidade. (ROCHA, 2015, p.83/84)
Neste sentido, quando o homem inseri a razão científica na busca de tentar compreender “as potencialidades” da natureza, a soma da razão científica, produz novos rituais que transforma magia em religião, com o predomínio da fé, e, agora, de certos limites ao “feiticeiro”, trazidos pela razão, surgindo o embrião da juridicidade, e assim, o Direito.
- Surgimento do binômio Religião e Ciência = Poder:
Estamos diante do surgimento do binômio Religião e Ciência, em uma visão materialista, com em Engels (1820-1895), a religião aparece junto com o direito e de maneira apolítica, portanto, junto com a razão científica, como uma ciência a par das outras.[...] A virtude da visão de Engels é que religião e ciência passam a ser produtos de uma mesma razão, como tal se complementam – metafísico e empirismo, divindade e experiência.Nesse sentido, tanto a ciência como a religião, para o homem não primevo, são produtos de uma mesma reação a conquistar o conhecimento e também, portanto, produto de relações concretas dos homens em seu devir de sobrevivência, que podem atender, e atendem, a forças, não mais da natureza, mas de poder. (ROCHA, 2015)
- Para Comunidades Primárias – Magia como surgimento do Direito Primitivo:
Para as comunidades primárias, a magia é a um tempo a adoração e a integração com o meio natural potencialmente superior, e de imediato, como forma e meio a partir do qual se estabelecem as práticas de sobrevivência material. Assim, pode-se dizer que a magia está na origem do “direito primitivo”, na explicação e determinação regras de conduta e sanções impostas diante da desobediência a essas mesmas regras.Pesquisas antropológicas têm demonstrado, em diversas organizações sociais menos diferenciadas, que a magia exerce um papel comum quando se trata de estabelecer a RECIPROCIDADE, no respeito e devoção do homem com a natureza, e por isso mesmo, a mesma igualdade entre os membros da comunidade, diferentemente do nosso tipo de organização social que se caracteriza pela COMPETITIVIDADE, tanto em relação ao meio ambiente como em relação a nossos semelhantes. Como se disse anteriormente, a dominação da natureza acaba produzindo a dominação do homem. (ROCHA, 2015, p.84)
- Direito e Religião:
A etapa intermediária entre o direito mágico das comunidades primárias e o direito de nossas sociedades com Estado foi, em muitos casos, o direito religioso e divinoPor todas as sociedades do Ocidente e por todas as civilizações antigas do Oriente houve ordenamentos jurídicos com base no divino. Isso levou à especialização de um clero e à preponderância de um segmento social formal por teólogos-juristas, que rapidamente construíram uma estrutura administrativa e burocrata que, ao sabor dos interesses dos grupos dominantes, estabelece os direitos e as sanções sociais a cada época. Assim, o direito e a religião, longe de ser instrumento de igualdade e justiça, passam a ser instrumento de poder efetivamente tomado como dominação social, econômica e políticaO fim da magia é, igualmente, o fim de uma sociedade igualitária. O império da religião é o dos deuses voluntariosos usados como serviçais das elites poderosas.Quando o direito laico e posto pelos homens surgir e consolidar-se efetivamente, haverá de provar que a escrita da dominação religiosa no direito deverá desaparecer!(ROCHA, 2015, p.87)