A entrevista feita com o informante da ditadura militar, cabo Anselmo, no programa Roda Vida, da TV Cultura, levado ao ar nesta 2ª feira, foi boa para o entrevistado. Descontraído, o personagem, um dos mais sombrios da vida política brasileira, buscou 'humanizar-se' repartindo sua folha corrida com a esquerda, cuja resistência legítima ao regime ameaçaria, no seu entender nebuloso, levar o país à guerra civil. Teria sido para evitá-la que ele traiu e entregou ao moedor de carne da ditadura --literalmente-- tudo e todos que dele se aproximaram. Inclusive a própria companheira. Esse, o personagem. O enredo não encontrou na forma e no conteúdo do programa um contrapeso suficiente à releitura psicopata da história. A forma trivial com que alguns o arguiram sobre a desumanidade de uma trajetória devastadora, a abordagem algo tosca de outros revelando despreparo latejante para o tema, sacramentou o tom de curiosidade do conjunto, a maioria jogando íscas, como turistas diante de um espécime raro no zoológico da história. Quem sabe ele retribui com uma cambalhota inédita? Possivelmente, aos olhos de muitos, em especial os mais jovens que não vivenciaram aquele período, o saldo tenha sido a relativização das razões em confronto. O episódio serve de alerta aos trabalhos da Comissão da Verdade. É preciso definir com precisão uma abordagem dos trabalhos que possibilite, de fato, trazer para o conhecimento e a reflexão do país, principalmente às novas gerações, o que foi e o que é o lastro de interesses racionais que propiciou a formação entre nós de um aparato dedicado a desossar seres humanos no pau de arara. A experiência do Roda Viva demonstra que é indispensável o amparo de vozes qualificadas da sociedade para expressar seus valores mais caros, aqueles que sustentam os laços da convivência compartilhada, laços humanistas, solidários e libertários, rompidos pelo horror de ontem, mas de hoje também. A Comissão da Verdade teria que chegar às salas de aula para cumprir a sua mais preciosa missão. É no confronto com esses valores, e com a atualidade que os ameaça, que a exposição da barbárie ganha dimensão pedagógica afrontada pela dialética do esclarecimento. Caso contrário, corre-se o risco de vulgarizar a sua ocorrência como mais um produto --ou celebridade-- a ser consumido e cuspido na engrenagem de uma espetacularização que empresta normalidade a qualquer coisa. Mesmo às mais abjetas.
(Carta Maior; 4ª feira, 19/10/ 2011)