"O torturador não é um ideólogo, não comete crime de opinião, não comete crime político, portanto. O torturador é um monstro, é um desnaturado, é um tarado" (Ayres Brito)

domingo, 18 de março de 2012

CASO “CURIÓ” E A ABSOLUTA DESÍDA DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS

Nesta semana o Ministério Público Federal ofereceu denúncia por crimes cometidos por “Curió” no período ditatorial brasileiro. A peça da denúncia é de um primor e qualidade extremamente elogiável, o que reflete, obviamente, a capacidade técnica e jurídica dos procuradores que a subscreveram.

Não obstante, o Juiz Federal João César Otoni de Matos não aceitou a denúncia com base nos famigerados argumentos já conhecidos com relação ao julgamento da ADPF nº153, com especial destaque para o falacioso argumento da “Reconciliação Nacional”.

O Poder Judiciário brasileiro desmoraliza toda nação ao resistir a julgar os crimes contra a humanidade cometidos no período de exceção brasileiro. Mais que isso, seus representantes, magistrados em geral, cometem Crime de Responsabilidade ao ignorar os princípios do Estado Constitucional Democrático brasileiro, bem como, as normas jus cogens e tratados internacionais que o país é signatário.

Não podemos admitir que Magistrados e Ministros do Supremo Tribunal Federal, de forma arrogante e prepotente, deixem de observar marcos axiológico de sustentação de nosso Estado Constitucional e de nossas garantias fundamentais. Até porque, a criação do Estado Constitucional por sí só, como a própria história nos provou[1], não é suficiente para sustentar um governo democrático, de modo que fica claro que falta o elemento garantidor da liberdade política do cidadão como forma de real manutenção do governo democrático. É evidente que a simples previsão do princípio da separação dos poderes, desacompanhada de formas de garantia relacionadas às liberdades políticas do cidadão, poderá produzir um Estado Constitucional não democrático. (ARAGÓN, 2008).

O elemento garantidor da liberdade, por sua vez, só é alcançado com um Poder Judiciário que respeite os valores, fundamentos e princípios elencados em sua Carta Magna.

Se a Constituição é o centro gravitacional do Estado Constitucional e, em última instância, ferramenta que evidencia os direitos e garantias fundamentais do cidadão, como é possível admitir que Magistrados e nossa maior corte o Supremo Tribunal Federal, possa julgar sem a absoluta observância dos preceitos constitucionais e humanitários?

Ora, se o Estado Constitucional Democrático moderno e a Universalidade dos Direitos Humanos são fruto e desdobramento dos horrores da Segunda Guerra Mundial, é possível demonstrar que a Jurisdição Internacional dos Direitos Humanos também é fruto de referidos horrores.

Neste sentido, as resoluções nº 03 e 05 da Assembleia Geral das Nações Unidas de 1946 já assegurava o caráter cogente dos princípios de direito internacional reconhecidos pelo Estatuto do Tribunal de Nuremberg.

Ademais, a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969, corroborou referido entendimento ao positivar em seu artigo 53 que as normas de direitos humanos são reconhecidas como normas jus cogens (ACCIOLY, 2010). Por sua vez, referida característica é importante já que possui como efeito a vinculação de todas as nações, principalmente as filiadas à Organização das Nações Unidas, ao respeito dos direitos humanos no âmbito externo e interno, de modo que os crimes de lesa-humanidade praticados pelos agentes e até mesmo o Estado brasileiro no período de exceção (1964-1985) obriga a investigação, apuração e julgamento de referidos crimes tanto dentro do país, como até mesmo fora, tanto é que recentemente houve a condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos exatamente por não apurar e julgar os crimes cometidos pelo Estado na Guerrilha do Araguaia, crimes diretamente relacionadas com a denúncia contra Sebastião Curió não foi recebida pelo magistrado de Marabá esta semana.

No caso em discussão a rejeição da denúncia do Ministério Público Federal pela Justiça Federal de Marabá demonstra de forma inequívoca um obstáculo imposto pelo Poder Judiciário.

Noutro giro, o artigo 2º do Pacto de São José da Costa Rica determina que o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo primeiro de referido Tratado deve ser garantido por meio das disposições legais e constitucionais de cada país membro, sendo dever até mesmo a mudança legislativa de referidos países no sentido de efetivar os direitos humanos.

Não bastasse isso, é importante destacar ainda que o próprio Supremo Tribunal Federal vem reconhecendo  a teoria do “crime continuado”, no caso do desaparecimento forçado de cidadãos argentinos, deferindo até mesmo a extradição de criminosos argentinos que praticaram crimes contra a humanidade no período de exceção naquele país. Já foram deferidas duas extradições nos termos aqui mencionados, de modo que os argumentos do Magistrado de Marabá e dos Ministros do Supremo Tribunal Federa no Julgamento da ADPF nº 153 são tão absurdos e diametralmente contrários aos princípios, valores, fundamentos do Estado Constitucional Democrático, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e Princípios do Direito Internacional, que, não há qualquer sombra de dúvida que o Magistrado de Marabá e os Ministros do Supremo estão sendo patentemente desidiosos, senão vejamos:

Art. 39. São crimes de responsabilidade dos Ministros do Supremo Tribunal Federal:

[...]

2 – ser patentemente desidioso no cumprimento dos deveres do cargo;

[...]. (grifos do autor).



Diante de toda desídia de nossos magistrados para com os principios fundamentais, que em última análise sustentam o Estado Democrático, não poderia encerrar essas digressões sem mencionar o Emérito Professor Fábio Konder Comparato (2010), ao afirmar que o Poder Judiciário brasileiro é refém do oligopólio empresarial e da manipulação realizada pelos grandes meios de comunicação, ao ponto do povo brasileiro sequer se indignar com o resultado de julgamentos como os ora discutidos aqui.



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[1] Referimo-nos as ocorrências relacionadas ao fascismo na Itália, ao nazismo na Alemanha e aos governos ditatoriais, principalmente os Latino Americanos que mais diretamente nos atingiram.

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