Iremos trabalhar com uma Resenha escrita, na época pela doutoranda pela Universidade Federal do Rio Grade do Sul Fanny Longa Romero que realiza uma análise muito rica do documentário À Margem do Corpo de Débora Diniz, o que, no nosso caso, iremos unir ainda, com o estudo das principais escolas antropológicas.
DINIZ,
Debora. À margem do corpo. Documentário. ABA/Fundação Ford, 2006.
DVD,
43 min, cor.
Fanny
Longa Romero*
Universidade
Federal do Rio Grande do Sul – Brasil
O
documentário À Margem do Corpo, objeto desta resenha, representa o resultado de
uma reconstrução de cunho antropológico a respeito de intensos contatos humanos
que giram em torno da experiência de vida e morte [ou dupla morte?] de uma
mulher chamada Deuseli Vanines: (+/-) negra, (+/-)
estuprada, (+/-) feia, (+/-) vítima ou (+/-) prostituta, entre outros tantos
atributos (na moral do que é pensado como bem ou como mal), adjudicados a essa mulher no âmbito de incertezas, ambiguidades,
adequações e contradições que permeiam os fatos narrados das pessoas
entrevistadas pela autora Debora Diniz.
Interessada
em conhecer a história de Deuseli sob diversas narrativas, a autora do filme
parte de dois processos judiciais que marcam a vida dessa mulher. Em um primeiro momento, vítima de estupro e, em um segundo
momento, assassina da sua filha de 11 meses, gerada nesse primeiro ato
violento. O documentário, produzido em 2005, com apoio da Associação Brasileira
de Antropologia (ABA) e da Fundação Ford, foi filmado nas cidades de Alexânia,
Anápolis e Goiânia durante 11 meses, tentando mapear a trajetória de vida de
Deuseli, a partir de diferentes relatos de pessoas que direta ou indiretamente
conheceram essa mulher, inclusive seu possível estuprador.
A
história passa-se em Goiás entre 1996 e 1998, num pequeno povoado do interior
desse estado. Fala-se de uma mulher de 19 anos, Deuseli (na atualidade morta),
de pais desconhecidos, aparentemente criada por um padrasto abusivo e com uma
história de vida presa a inconstâncias provocadas pela pobreza, os maus-tratos
e a necessidade de sobrevivência. Nas narrativas dos
entrevistados, traçam-se diferentes percepções sobre ela que englobam desde
valorações positivas a percepções negativas de
acordo com os juízos e as construções culturais operacionalizadas nos
discursos.
Dessa forma, Deuseli ora é apresentada como
uma “pretinha não muito bonita, mas afetuosa”,
ora como “uma mulher bem, bem morena, preta não tão
feia”; ora como uma prostituta, ora como uma mulher possuída por forças espirituais desconhecidas ou
malignas; ora como uma mãe desnaturada, ora como uma vítima produto da sociedade na qual está inserida (no total
foram três gestações, sendo que na sua última gravidez, Deuseli não pariu seu
terceiro filho ou filha). Ela, talvez, quis conduzi-lo(a), através de seu
corpo, junto com ela, em direção à morte.
Nesse
sentido, o documentário chama atenção a respeito do caráter perturbador do
contato direto, íntimo e intersubjetivo da experiência vivida entre indivíduos
em relação com as questões simbólicas que permeiam a vida social dos mesmos,
numa época e num espaço determinado. Tais contatos dificilmente podem “deixar
de afetar a sensibilidade das pessoas que os realizam” por serem, num amplo
sentido, permeados por ações simbólicas (Geertz, 2001, p. 31).
Esta resenha foi pensada, principalmente, no
contexto de duas obras, Geertz (1989, 2001) e Sahlins (1979, 1990). De fato,
nossa análise se desenvolve em termos de uma experiência interpretativa de
segunda ou terceira mão; enfim, uma ficção de sentido, um ato de imaginação
antropológica orientado por ações simbólicas. Neste trabalho, alguns aspectos
da história sobre Deuseli são, brevemente, recontados em pequenos segmentos localizados
entre colchetes como uma maneira de dar inteligibilidade à estrutura textual
daquilo pensarmos realizar parcialmente, isto é, “penetrar no próprio corpo do
objeto”, e, por outra parte, nos esforçamos em fazer, compreender o conteúdo,
(Sahlins, 1979). Nisso, “eis no que consiste a pesquisa etnográfica como
experiência pessoal” (Geertz, 1989, p. 10).
Quanto à história em si mesma, ou melhor, o
que fez Deuseli para ser o locus central da história? Nesse caso, pode
conceber-se, ao mesmo tempo, como veículo e sujeito da ação e, mais
extensamente, como objeto e sujeito de contemplação, interrogação e/ou
interpelação. Em última instância, os diversos cenários que permeiam a história
e dão sentido à mesma, estes são: o jurídico, o discurso médico
legalista, o religioso
(católico), a sociedade civil,
assim como as relações de patronagem, amizade, vizinhança e de parentesco são,
de forma geral, esquemas conceituais entrelaçados que, nos seus termos, dão
inteligibilidade a um evento, isto é, uma noção relacional construída no
reconhecimento simultâneo de uma contingência histórica ou de uma ação
individual e os mapas decorrentes de uma ordem cultural determinada.
As angústias de Deuseli são
interpretadas, como muitos narradores pensam, na sua
ação previamente intencional de agredir a si mesma cortando seus cabelos com
uma faca, se mordendo ou montando um cenário permeado por elementos simbólicos
em que seu próprio self misturava-se com alimentos (o feijão derramado na
cozinha formando parte do cenário onde ocorreu o estupro), fluídos humanos (manchas brancas secadas no seu corpo;
seria sêmen?) e sua própria memória individual (lembranças
de agressões abusivas quando criança) classificaram seu corpo e, com seu corpo,
um self fazendo-o corresponder com as representações coletivas geradas pela
ordem cultural.
O que tais reflexões nos ajudam a entender é que as narrativas dão
conta de um arsenal de tramas, negociações, percepções encontradas,
interrogações sem respostas definitivas, apreensões de uma realidade em um
momento determinado e, sobretudo, reinterpretações que, à luz do trabalho de
campo in loco de Diniz, deram novos sentidos a acontecimentos passados. De
fato, tudo se passa como se o passado estivesse metaforizado pelo próprio
presente que, intencionalmente ou não, quer revesti-lo de uma nova significação
e mantê-lo, de certa forma, vivo.
No
entanto, em muitos casos, percebemos nas narrativas a procura de verdades
caseiras (Geertz, 2001), ou a imposição de uma moral por cima da interpretação cultural. Dessa forma, certas vozes, vindas da ordem religiosa
católica, revelam não somente um elevado dogmatismo, refém de uma inextricável
violência simbólica perante a vida de Deuseli, mas também uma irracional
intervenção, no sentido mais literal do termo, no corpo de Deuseli;
corpo este concebido por essa personagem como “um meio de comunicação com o
mundo” (Merleau-Ponty, 1971) ou, em termos ainda mais extensos, corpo “sempre
presente” entendido pela sua possuidora como um meio de existência simbólica
que permitia dar-lhe inteligibilidade à apreensão da sua experiência vivida
traduzida nas ações que culminam com a decisão do fim da sua vida e do seu
corpo como interlocutor das suas sensibilidades mais angustiantes.
Uma das vozes do texto
etnográfico construído por Diniz chega a objetar frente à iminência da fatal
(não sei se chamá-la dessa forma seja o mais apropriado) sorte de Deuseli, a
necessidade de se fazer um batismo na última criança gerada e morta no corpo
dessa mulher. Nesta época, em que discussões como os
direitos reprodutivos, os direitos sexuais, a legalização do aborto e o papel da
laicidade do Estado brasileiro em particular, estão na arena de um debate
ético, político e humanístico, mas também local e global,
torna-se conflitante lidar com a ideia de cultura como um epifenômeno. De fato,
a eficácia da noção de cultura como uma ordem de
significação não pode ser “suspensa”, principalmente quando essas questões
levantam-se cada vez com mais força no mundo contemporâneo.
O problema aqui é explodir o conceito de história pela experiência
antropológica da cultura? (Sahlins, 1990) ou, como diria Geertz (2001), pelos
usos que fazemos da diversidade? A essas alturas, perguntarmo-nos o que isso
significa? Quais são os limites da interpretação antropológica ou, melhor, da
imaginação antropológica, quando nos situamos discursivamente na composição da
descrição densa dos fatos culturais? De que lugar pode-se partir para abordar
as tensões criadas no devir da nossa própria existência cultural? Enfim, como
dar inteligibilidade às novas estranhezas, inconsistências e contradições
geradas na diversidade das ações humanas. Nessas
sensibilidades que inquietam, seria possível conceber o documentário de Diniz
como “uma estrutura dramática com propriedades de transformação ritual”?
(Sahlins 1990, p. 142).
Nesse
sentido, a construção de Deuseli poderia interpretar-se dentro de uma análise
comprometida com “uma visão de afirmativa etnográfica” e, portanto, tal como
nos lembra Geertz (1989, p. 20) “essencialmente contestável”.
Referências GEERTZ,
Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.
GEERTZ, Clifford. Nova
luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
MERLEAU-PONTY, M.
Fenomenologia da percepção. Lisboa: Martins Fontes, 1971
SAHLINS, Marshall.
Cultura e razão prática. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979.
SAHLINS, Marshall. Ilhas
de História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990