"O torturador não é um ideólogo, não comete crime de opinião, não comete crime político, portanto. O torturador é um monstro, é um desnaturado, é um tarado" (Ayres Brito)

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

ALGUNS DE MEUS HERÓIS AINDA ESTÃO VIVOS



“Nenhuma palavra foi dita entre eles, mas pelo olhar, ambos dialogaram. Os olhos do filho comunicaram: “Não falei, não te decepcionei”. E ambos sentiram orgulho um do outro”. (BRASIL, 2009)

Ivan Akselrud de Seixas é um dos meus heróis que estão vivos. Quanto mais leio a respeito de Ivan, maior é meu apreço, admiração e respeito por esse incansável Militante dos direitos humanos.
Os fatos que sustentam toda minha admiração se retratam ao longínquo ano de 1971.  Para alguns, como os meus pais, foi um ano para recordar com carinho, pois em um sábado do dia 18 de Dezembro do ano de 1971, se casaram. Para outros, como Ivan e sua família, é um ano triste, que jamais deverá ser esquecido por todos os cidadãos deste país.
Passados 39 anos, estou com casamento marcado para o dia 18 de Dezembro de 2010, no mesmo horário em que meus pais se casaram. Realmente, nossa vida é curiosa e a história, o destino, sempre nos reserva surpresas.
Em 1971 eu nem existia. Meus pais imaginavam ter filhos, mas sequer sabiam que teriam três filhos. Meu avô materno já havia enterrado livros no fundo do quintal, por conta do Regime Ditatorial e os acontecimentos políticos de nosso país estavam em grande ebulição. Algumas pessoas fazem o que tem que ser feito, no momento em que a história exige atos comissivos e não omissivos. Estes são os heróis.    
Quando eu tinha 16 anos, apesar de ser um rapaz já preocupado com política, economia, direitos sociais, direitos humanos, apesar disso, era um rapaz que tinha comportamento normal para sua idade. Ia à escola, estudava, sempre gostei muito de ler e ia ao clube à tarde.
Houve um período que ia ao clube todo dia. Usava um aparelho ortopédico para coluna, que foi responsável por meu apelido “Robô”, já que andava com aqueles ferros e duro como um verdadeiro robozinho mesmo. A questão é que meu médico ortopedista orientou-me a praticar natação, para que minha coluna fosse corrigida mais rapidamente e o período de uso do aparelho fosse menor. Bem, um adolescente, usando um aparelho daquele, era algo horrível. Lembro-me como se fosse hoje o primeiro dia que cheguei ao colégio utilizando o aparelho. O colégio inteiro parou e todos ficaram me olhando, sequer disfarçaram, foi horrível, como naturalmente seria para qualquer adolescente em razão da fase. A adolescência já é uma fase difícil dentro da normalidade, com aquele aparelho de coluna, foi algo bem complicado. O fato é que não me deixei abalar, lógico, nos primeiros dias fiquei um pouco deprimido e demorei a acostumar-me com as pessoas me olhando na escola, na rua, no banco, nossa!! Nas Agências Bancárias era duplamente constrangedor, primeiro porque os seguranças se assustavam com aquele colete, já que eu usava uma camisa por cima do aparelho e segundo porque todos ficavam me olhando.
Apesar de tudo isso, tive uma vida feliz, uma adolescência saudável, já que cheguei a praticar dois mil metros de natação por dia. Isso que era vontade de sarar da coluna logo e tirar aquele aparelho!.
Estou contando tudo isso para contextualizar exatamente o que pretendo discutir. Muitas vezes, como Coordenador de um Curso de Direitos Humanos e Professor nas disciplinas de Direito Internacional Público e Privado e Ética Geral e Jurídica em um Curso de Direito de uma Universidade Estadual, sou obrigado a questionar-me se teria tido a coragem que muitos estudantes tiveram quando ocorreu o Golpe de Estado em 1964 e nos anos posteriores?. Essa questão me inquieta profundamente. Não sei, sinceramente, se teria feito algo por meu país, pela liberdade de expressão, pelos direitos humanos, pela defesa dos desaparecidos e, dos denominados, “terroristas” pelo governo ditatorial, ou se teria, simplesmente, assistido os fatos ocorrerem como testemunha ocular débil, covarde e medíocre?
Na verdade, tenho até muito medo de realizar essa reflexão, pois, em determinados momentos, acredito que teria sim reagido e militado em favor do Estado Democrático de Direito, da liberdade, dos direitos humanos, da democracia, da justiça, ou seja, fazer o que tinha que ser feito naquele momento por todo cidadão brasileiro. Mas, em outros momentos, me encontro totalmente perturbado e consternado, com a possibilidade de ter sido um covarde, um estudante débil e passivo e um cidadão completamente imperito, ou até mesmo negligente para com meu país, colegas e direitos humanos.
Ser justo, fazer a coisa certa, “exige presença de espírito”, personalidade forte,  e acima de tudo coragem. Recordo-me de um amigo no colégio que era vítima do que hoje foi identificado como “Bullyng”, algo que possui efeitos comprovadamente terríveis para as suas vítimas. Pois bem, apesar de não participar dos atos praticados contra esse amigo, limitei-me a apenas tentar convencer alguns dos algozes de que aquilo era errado, mas nunca lutei ao lado deste amigo em sua defesa de forma mais efetiva, ou até mesmo, tentei protestar ou denunciar aqueles atos ao Diretor da Escola. Ou seja, naquele momento, não fui justo, não fui algoz de meu amigo, mas fui negligente e fechei os olhos para aqueles fatos que ocorriam na frente de meus olhos. A atitude que tive neste período aqui descrito é a mesma que a imensa maioria dos brasileiros tiveram nos “Anos de Chumbo”.
Penso muito a respeito. É muito difícil ter a coragem e a determinação para fazer a coisa certa e necessária no seu devido momento. A história não perdoa enganos. Às vezes penso que poderia estar morto se fosse vivo naquele período, por ter militado na causa dos direitos humanos e do Estado Democrático de Direito e as vezes, penso que teria sido um passivo cidadão, totalmente inepto para com os valores da cidadania e que fecharia os olhos para todos os acontecimentos, assim como fiz para o que aconteceu com meu amigo no colégio. Deveria ter lutado ao lado dele, ter denunciado aqueles atos para o Diretor da Escola, mas não fiz quase nada.
Com a idade de 16 anos fui um garoto com todas as imaturidades, inseguranças, vergonhas e medos naturais para a idade da efervescência dos hormônios. Logo, não consigo, por mais que me esforce imaginar-me atuando bravamente como Ivan Seixas.
“Mentira no pau-de-arara
Ivan Seixas aprendeu a mentir no pau-de-arara. Nos seus 16 anos de vida sempre fora ensinado pelo pai – Joaquim Alencar de Seixas – a falar a verdade. O mesmo pai que naquele momento era torturado a poucos metros, na chamada “cadeira do dragão”. Ao serem presos juntos, Joaquim revogara o velho conselho: “Agüenta firme. Não fala”. Foram as últimas palavras que Ivan ouviu dele. Poucas horas depois, o pai seria assassinado por agentes do DOI-CODI, que também saquearam a casa da família e encarceraram sua mulher Fanny e as duas filhas, Ieda e Iara. Ivan passaria os próximos seis anos – ou seja, toda a sua adolescência e parte da juventude – na prisão, sem julgamento.
[...]
Levados para a 37ª Delegacia de Polícia e depois para as dependências do Destacamento de Operações de Informações/Centro de Operações de Defesa Interna de São Paulo – o DOI-CODI – pai e filho foram espancados a ponto de se romperem as algemas que os unia. Depois, os agentes os torturaram juntos. Apesar da dor, o cérebro de Ivan trabalhava sem trégua: “Não posso falar. O meu pai está ouvindo. O que ele vai pensar de mim?”. Ao mesmo tempo, seu corpo esgotava os limites. Assim, veio a idéia de mentir. “Preciso falar, mas não a verdade”, pensou. E forneceu a informação de um ponto falso”. (BRASIL, 2009)

Não sei, sinceramente, se conseguiria suportar horas de torturas, e não falar nada. Não sei se conseguiria ver meu pai ser torturado na minha frente e ao mesmo tempo, manter-me “calado”. Você já imaginou ser torturado por horas a fio e conseguir preservar a segurança de seus amigos por meio da manutenção do sigilo de seus nomes e locais de seus aparelhos? Heróis fazem o que é necessário fazer, no momento em que a história lhes cobram uma conduta omissiva ou comissiva. Não é fácil ser herói. Esse país, o Brasil, não tem tradição no reconhecimento de seus verdadeiros heróis. Se hoje temos Democracia e liberdade de expressão, é em razão de pessoas extraordinárias que fizeram o que tinha que ser feito, mesmo que colocando em risco suas vidas, suas carreiras, seus trabalhos, sua sanidade física e mental.
O BRASIL PRECISA RESGATAR À VERDADE, À MEMÓRIA, REALIZAR SUA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E RECONHECER SEUS VERDADEIROS HERÓIS.
Um povo não precisa buscar “Salvadores da Pátria”, mas esse mesmo povo deve reconhecer os méritos daqueles que fizeram o que tinha que ser feito, com sacrifício de suas próprias vidas na defesa da Democracia, da Liberdade e da Justiça.
Se não resgatarmos nossa história, construindo uma Memória eficiente dos fatos que ocorreram neste país, desnudarmos os fatos ocorridos no período da Ditadura Brasileira 1964-1985, revelando à Verdade e, não julgarmos os agentes estatais que cometeram crimes contra a humanidade, correremos o risco de continuar a dar mais valor para Jogadores de Futebol, do que para Jornalistas, Militantes do Direitos Humanos e Professores que trabalham a vida inteira para a formação intelectual, ética, política e humanista de nossas crianças e adultos.
Hoje, se perguntar para algumas crianças se querem ser Professores ou Jogadores de Futebol, a resposta é praticamente certa em mais de noventa por cento dos casos: Jogador de Futebol, este fica rico, o professor fica pobre.
Precisamos sim resgatar à Verdade, preservar à Memória, realizar nossa Justiça de Transição julgando os agentes estatais que cometeram barbaridades em nome do Governo Ditatorial e valorizar nossos verdadeiros heróis.
Devemos repudiar muito firmemente quando o Pedro Bial chama aqueles participantes do “Reality Show” da TV Globo de “Meus Heróis”.

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